Por Neide Medeiros Santos
“Multipliquei-me, para me sentir
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.”
( Álvaro de Campos. Passagem das horas)
Autobiografia é uma das modalidades da “escrita do eu”, as outras são diários, confissões, memórias. Em cada uma dessas modalidades há o extravasamento do “eu”. Na autobiografia, a vida interior é passada a limpo e se compõe de reflexões sobre a vida, pensamentos, emoções, análises do mais recôndito do ser. Geralmente as autobiografias seguem uma ordem cronológica, isso não acontece com Autob/i/ografia (Ed. Arribaçã, 2023), de Solha.
Espírito irrequieto e não afeito às convenções, o autor extrapola os limites tradicionais das autobiografias. Em flashbacks ou caminhando para o momento presente, às vezes até de forma premonitória para o futuro, retalhos da vida são apresentados como se estivéssemos vendo um filme com seus avanços e recuos.
Na Apresentação do livro, o editor Linaldo Guedes já chama a atenção do leitor para a não convencionalidade, para a multiplicidade do texto, onde o autor é o solista e compara esta autobiografia com o “livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, com a explicação de que em Pessoa há reflexões a partir do que leu ou viveu, em Solha essas reflexões são a partir do que viveu. Solha e Pessoa são heteronímicos, são muitas pessoas em uma só, em cada canto da alma dos dois poetas/escritores há um altar a um deus diferente.
Ler esta Autob/i/ografia é conhecer os meandros do fazer literário do escritor e do artista múltiplo, ora como poeta, pintor, ator, funcionário do Banco do Brasil, ativista de boas causas sociais, viajante/ viandante que tem um olhar diferenciado para tudo que o circunda, que sabe aproveitar todos os bons momentos que uma viagem internacional pode proporcionar.
Destaco as explicações sobre o seu fazer literário, os desafios que encontrou na execução de alguns trabalhos literários que exigiam esforços que pareciam intransponíveis, mas que foram conseguidos e com êxito.
Há certas passagens dignas e nota e anotei algumas. Sobre Trigal com corvos, o primeiro livro da série de “tratados poético-filosóficos” , ele afirma que não foi fácil, trabalhou durante onze anos para ter a versão final. Uma leitura prévia do texto pelo crítico João Batista de Brito dos originais veio na companhia de um parecer – “solto demais, discursivo , conceitual , denotativo demais para ser poesia”. A opinião de JBB foi decisiva para o aprimoramento do livro que ficou entre os finalistas do Prêmio Nestlé.
No item que traz o título “Pausa”, o autor conta alguns fatos interessantes ligados à família. Quando o neto Israel era bem pequeno, ao ver o avô no filme O Salário da Morte, em preto e branco, perguntou:
– No seu tempo o mundo não tinha cor?
A filha Andréia era criança, o pai começou a contar uma história de uma linda menina que não tinha pai nem pai, ela vibrou e exclamou:
– Obaaa!
Além de ator, Solha teve experiência em comerciais de TV. Foi Freud de charuto, colete e relógio de bolso, para o lançamento de um edifício em João Pessoa. Fez propaganda do supermercado Boa Esperança – Lugar de gente feliz . Este slogan algum tempo depois passou a ser do Pão de Açúcar.
A respeito da Cantata para Alagamar, afirma que reuniu três pessoas bem distintas: um judeu (Kaplan), um bispo (Dom José Maria Pires) e um ateu (Solha). Essa reunião de pessoas de pensamentos diferentes não ocasionou nenhum mal-estar entre os três, foram momentos de perfeita união.
Na área da pintura, o destaque vai para Homenagem a Shakespeare, trabalho artístico para o auditório da reitoria da UFPB, “um retângulo de cerca de vinte metros quadrados, composto de 36 telas, cada uma alusiva a uma obra-prima do Bardo” ( 2023:p. 150).
Seria impossível esgotar os comentários desta autobiografia na coluna “Baú de livros”. Fica a recomendação da leitura, há muito para ser desvendado neste livro que oferece um panorama literário e artístico de quem viveu e vive intensamente cada momento da vida.
* Artigo publicado no jornal A União em 5 de março de 2024