“Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala do seu bandolim”
Sérgio Bittencourt
Em todas as páginas de seu diário semanal, Leonardo Davino de Oliveira cita poemas – alguns que se transformaram em maravilhosas letras de músicas. Por isso, achei apropriado iniciar este prefácio com uma epígrafe dos versos de “Naquela mesa”, canção escrita em 1974 por Sérgio Bittencourt, em homenagem póstuma ao seu pai, Jacob, e imortalizada na voz de Nelson Gonçalves.
Desde março de 2020, muitos de nós vivemos a sensação da mesa vazia no canto. O jardim antes povoado de vozes, agora em silêncio. Milhares de vidas foram tiradas pelo Covid-19. Vidas que poderiam ter sido salvas se a vacina tivesse chegado antes ao Brasil.
Domingou apandemia traz um pouco de cada um nós: toda a angústia que enfrentamos ao longo de meses. Cento e onze domingos de incertezas, indignação e dor. Acompanhando as notícias, víamos o descaso do governo e a despreocupação com os outros dos seguidores do presidento.
Muito se falou em empatia, em mudanças, promessas, solidariedade… Frases feitas e imagens de gente “fina, elegante e sincera” que, como afirma Leonardo, “romantiza a fome (do outro) para pousar bem na selfie”.
Ao longo desse período, muitos buscaram algum tipo de subterfúgio para sobreviver, e os de Leonardo foram a escrita, a leitura e os versos de músicas compartilhadas por posts do Facebook e do Instagram que agora se transformam em livro.
Segundo Philippe Lejeune e Catherine Bogaert (2020, p. 25), a escrita do diário é uma atividade ocasional ou irregular: “As pessoas mantêm um diário em tempos de crise, durante uma fase da vida ou para relatar uma viagem”.[1] Os autores apontam ainda que a maioria dos diários se debruça sobre um tema, um episódio específico pelo qual passamos, um momento difícil, enfim. Consideram que a maioria dos diaristas apresenta duas características em comum: o gosto pela escrita e a preocupação com a passagem do tempo.
É o que percebemos também no diário de Leonardo, que vai entremeando seu texto com as palavras de romancistas, poetas, cronistas, jornalistas, pensadores, filósofos… “Faço das suas palavras, as minhas”: talvez Leonardo tenha pensado nesta frase ao citá-los. Conforme os meses foram passando, possivelmente tenham lhe faltado palavras – como aconteceu com muitos de nós – para expressar tanta tristeza, impotência e revolta.
Se, durante a pandemia, para muitos, o tempo parou, para outros, significou uma corrida de esperança contra a morte: vacinar ou morrer. Muitos perderam. Mesa vazia no canto. Jardim em silêncio.
Mas a mesa e o jardim de Leonardo já estavam em silêncio antes da pandemia. Como o diário de Roland Barthes, o de Leonardo também é um diário de luto pela perda de sua mãe antes de março de 2020. Saudades, pranto, leitura e Gilberto Gil: os companheiros de Leonardo e, talvez, os de muitos de seus leitores também.
Em Diário de Luto, Barthes (2011, p. 110) afirma: “Escrever para lembrar? Não para me lembrar, mas para combater a dilaceração do esquecimento na medida em que ele se anuncia como absoluto. O – em breve – ‘nenhum rastro’, em parte alguma, em ninguém”.[2] Como superar a falta de um corpo cujos rastros vão se apagando com o tempo? O luto se supera?
O diário de Barthes é, como diz Ana Chiara (2014), silencioso e minimalista. A fala de quem não superou o luto. Talvez, superar não seja possível, mas Leonardo nos mostra que é possível ressignificá-lo através de muitas palavras e poesia.
Sua “mainha” lhe deixou boas lembranças, conselhos, aprendizados. Os rastros físicos não se veem mais, não há mais o conforto do abraço, mas a vida segue e ele não se esquecerá. Eternizará na escrita e na profissão de professor o que aprendeu com ela. É assim com Leonardo e pode ser assim com todos os que perdemos entes queridos ao longo desses mais de cem domingos.
A mesa no canto está vazia, o jardim, em silêncio. Aprendamos com Leonardo. Vamos enchê-los de música, de palavras, de presença. Domingou apandemia: muitos domingos ainda virão – e mais felizes.
Daniele Ribeiro Fortuna, junho de 2022
Prefácio do livro “Domingou Apandemia”, de Leonardo Davino, Arribaçã, 2022
Referências:
BARTHES, Roland. Diário de luto. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
CHIARA, Ana: “Che vuoi?”: Barthes com Lacan. Revista Trama Interdisciplinar. Vol. 5, p. 52 -57, 2014.
LEJEUNE, Philippe; BOGAERT, Catherine. The practice of writing a diary. In: BEN-AMOS, Batsheva; BEN-AMOS, Dan. The diary: the epic of everyday life. Indiana: Indiana University Press, 2020 (Edição do Kindle).
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O livro “Domingou Apandemia”, de Leonardo Davino, está à venda no site da Arribaçã no seguinte link: http://www.arribacaeditora.com.br/domingou-apandemia/
[1] Tradução minha. No original: People keep a diary in times of crisis, during a phase of life, or to chronicle a voyage.
[2] Grifos de Roland Barthes.