Um dos maiores desafios da comunicação, segundo Dominique Wolton (2006), é o reconhecimento das diversidades e o respeito às diferenças e à própria existência criativa do outro. Quando isso ocorre, temos uma relação calcada na autonomia dos sujeitos no ato de pensar e comunicar. Assim, a comunicação é também comunhão de conhecimentos e troca de experiências que visam à emancipação humana. Ocorre o “tornar comum” que pode romper com o isolamento e valorizar a tomada da palavra em torno da produção de sentidos que nos colocam mais próximos e em diálogo.
Não mais a profusão de informações descontextualizadas da realidade de quem as produz; não mais a busca sensacionalista pela audiência de consumidores, mas a conquista de cidadãos e cidadãs críticos e conscientes da importância da comunicação para o desenvolvimento da sociedade.
No Brasil, os sistemas concentrados de mídia nas mãos de poucos, muitas vezes, em lugar de favorecer o pluralismo de vozes e ideias, acabam por reproduzir visões de mundo que impulsionam processos de silenciamento e exclusão das mulheres. Temos, então, a distorção do conceito de liberdade de expressão, em tantas ocasiões, tomado quase como um sursi para justificar a proliferação de discursos de ódio e o ataque aos segmentos de negros/as, comunidades tradicionais, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, mulheres, idosos/as, crianças e adolescentes e etc… Nesse sentido, é imprescindível conhecer como se dão as violações aos direitos humanos de setores historicamente alijados dos processos comunicacionais, que, muitas vezes, são despojados da própria humanidade para emergir nas telas e ondas de modo objetificado.
E é exatamente o que a obra “A Desinformação e a Violação dos Direitos Humanos das Mulheres: Um Estudo de Caso sobre o Alerta Nacional”, de Mabel Dias, propõe ao analisar como uma concessão pública de TV foi capturada pelos interesses econômicos de uma ínfima parcela da sociedade e tem sido usada para estimular o ódio às mulheres.
Como um grupo de mídia opta por levar ao ar um programa que criminaliza enormes contingentes populacionais ao transgredir códigos deontológicos e ofender cotidianamente brasileiras e brasileiros nas telas e nas redes? Como uma produção de mídia é capaz de propagar a misoginia em horário nobre, por tanto tempo, quase sem nenhuma punição? Por qual razão um apresentador permanece comandando uma “atração televisiva” que expõe as mulheres em situações vexatórias? As análises de Mabel Dias questionam esses paradoxos e propõe uma ação mais contundente da sociedade e do Estado brasileiro para responsabilizar veículos, produtores e apresentadores que insistem em reproduzir tais formatos por qualquer plataforma.
Apesar de citar a Lei Maria da Penha, por exemplo, eles tendem a descumprir um importante preceito da lei quando realizam coberturas sem criticidade, não ouvem as mulheres e as apresentam de modo depreciativo, reproduzindo julgamentos com base em recortes das suas relações familiares, da estética (reprodução de supostos padrões de beleza) e das escolhas amorosas. Ou seja: reforçam a naturalização da violência simbólica contra as mulheres.
Em geral, os apresentadores de tais programas de televisão exigem leis mais rígidas, maior tempo de prisão e, em alguns momentos, reformulação geral dos códigos e até das ações policiais, incluindo punições como a pena de morte. Na maior parte dos casos, os reais motivos dos desvios sociais não são apresentados ou questionados. As fontes oficiais, quando utilizadas, servem para legitimar uma posição, um sistema que aparenta ser compensatório.
Os dados colaboram com o que muitos/as pesquisadores/as brasileiros apontam quando percebem que os veículos de comunicação fixam estereótipos geradores de preconceitos e discriminação, produzindo e reproduzindo valores e hábitos consoantes a formações ideológicas sexistas, homofóbicas e racistas. Assim, tais produtos favorecem à desordem informativa e à perpetuação de crimes de racismo e homofobia, além de investir na naturalização da violência contra as mulheres e sua desqualificação perante os/as telespectadores. Trata-se da reprodução de estigmas sociais, uma disfunção dos meios de comunicação, que deveriam servir à sociedade como aliados na defesa dos direitos das mulheres.
Portanto, a publicação em tela nos leva a pensar o quanto é importante a revisão do marco legal da comunicação no Brasil, que pode passar, inclusive, pela regulamentação do Capítulo V da Constituição Federal Brasileira, de 1988. A regulação democrática da comunicação pode, sobretudo, auxiliar a população quanto à defesa dos seus direitos violados por programas de rádio e televisão.
Além disso, provoca os/as leitores/as à compreensão acerca das lacunas históricas e legais que impedem que determinados sujeitos coletivos possam se organizar para enfrentar setores de uma mídia televisiva que são detentores de um poder econômico que os leva a atuar em desalinho com o marco civilizatório, além de atentar para a importante contribuição dos movimentos sociais e organizações independentes que atuam na defesa do direito humano à comunicação. Um direito que pressupõe a existência de sujeitos da sua própria história, capazes de observar os meios de comunicação não somente como consumidores, mas, sobretudo, como produtores de conteúdos.
Para além de descortinar os processos comunicacionais inerentes à reprodução histórica de programas sensacionalistas, que buscam a reedição da cultura do espetáculo, com formatos televisivos que investem no escárnio e na ofensa como fórmula para atrair o público pela exploração do grotesco, a obra que ora apresentamos, fruto de um trabalho rigoroso de pesquisa de mestrado, ocupa um lugar importante na academia.
Portanto, chama a atenção para um espaço de grande poder social que precisa ser ocupado por produções que genuinamente invistam no cumprimento da função social do jornalismo enquanto projeto voltado à emancipação da humanidade.
Ana Veloso
Jornalista, professora do departamento de comunicação da UFPE, integrante do Coletivo Intervozes e da coordenação da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadoras com Visão de Gênero e Raça.
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O livro “A desinformação e as violações aos direitos humanos das mulheres: Um estudo de caso sobre o Programa Alerta Nacional”, de Mabel Dias, pode ser adquirido AQUI