Sobre o livro “Solidão”, de Clara Baccarin

Por Krishnamurti Góes dos Anjos

 

Novamente, e com que satisfação, encontramos nova produção da escritora Clara Baccarin. Neste Solidão voltamos a reler autora que faz da introspecção de suas personagens um constructo humano, lançando mão da intuição que é capaz de nos fazer descer fundo para abeirar-se do indizível. Segue explorando os contornos palpáveis das memórias e do cotidiano trivial de suas criaturas a ver o que podem significar além dos grosseiros sentidos e da rotina do tempo e isto nos leva à compreensão de que a verdadeira redenção está em aprendermos a viver também com nossas emoções e nossos instintos, conservando-os em equilíbrio.

A autora é especialista em lavrar flagrantes, ou seja, surpreender personagens no instante em que se consultam, se olham, se flagelam ou se redimem. E o faz com uma tal naturalidade que da narrativa surgem certas frases luminosas a estremecer de súbito a superfície enganosamente calma do relato, desvelando uma verdade até então insuspeitada, como ocorre em As águas de verônica. Em outros contos cria personagens de ardorosa vida interior como é a Silvinha de Hotel três estrelas. Em outros textos ainda, lança mão das memórias como ocorre em Kombucha, relato de uma mulher que rememora com muita maturidade toda sua vida afetiva até o fechar do último relacionamento com um divórcio. Doloroso como um furúnculo nas costas.

Como não se encantar com as descobertas na adolescência, das durezas da vida, que alcançam uma Júlia de Agora que você sangra? Como não amar meu Deus, a loucura tipo ‘porra-louca-desnorteada’ de uma Alice – A delicadeza de Alice –, coitada, a ler “A sutil arte de ligar o foda-se”, primeiro, para afinal descobrir uma das grandes belezas da vida que é precisamente compor seus próprios poemas? A nota aguda e pungente dos transes líricos de certos textos atingem o leitor e constituem punhaladas certeiras. Marcam, sínteses poderosas, como ocorre em Domingo. Profunda perquirição existencial de Dolores quanto à passagem do tempo/existência em um dia muito nublado e abafado. Verdadeira tempestade cerebral.

Personagens solitárias a maioria delas, é verdade; assim como também é verdade que algumas transformam solidão em solitude e desenvolvem a capacidade de transformar angústias em reflexões, processar problemas e emoções difíceis, seguir em frente com suas vidas. Lucidez e autoconhecimento. E tudo vai ao fim e ao cabo, convergindo para um ciclo de revisitação à ancestralidade feminina quando lemos a Ana de Ao alcance da mão. A “memória da ancestralidade feminina e seus armarinhos secretos”. Essa mesma ancestralidade que, por instinto e, por mais amor ainda, se revela estuante nos extraordinários lampejos maternais que transbordam na segunda parte da obra, das Pequenas histórias de puerpério.

Há aqui uma verdadeira galeria de requintadas personagens femininas a povoar uma prosa lírica, de movimentação de ideias, e que imergem para se materializar, para se interiorizar em seus conflitos, de tal maneira que passam a existir simbolicamente. E ninguém se engane, inclusive e sobretudo, para o universo masculino.

 

* Krishnamurti Góes dos Anjos é escritor e crítico literário. O texto acima é o posfácio do livro “Solidão”, de Clara Baccarin

 

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