Não pense o leitor que vai encontrar nesta obra uma autobiografia “normal”, com começo, meio e fim, em ritmo cronológico, passando pelas várias etapas da vida do autor. Nada pode ser considerado normal quando falamos de W. J. Solha, a começar do seu nome, já que solha originalmente é o nome que se dá a um peixe que tem os dois olhos no lado esquerdo. Pois bem! Para não fugir a tradição dos peixes de Picasso, Solha sempre foi um ser único, independente, mesmo que quase sempre tenha feito trabalhos artísticos coletivamente ou em parceria. Desde quando começou a fazer suas primeiras pinturas, ainda criança, em Sorocaba, São Paulo. Ao longo de 80 anos de vida, construiu uma carreira onde foi de tudo: pintor, ator, dramaturgo, cineasta, escritor, poeta – tendo atuado como bancário profissionalmente e às vezes como publicitário, onde, ao fazer “bicos” para sobrevivência, elaborou peças que fugiam do lugar-comum da publicidade em João Pessoa.
Esse livro é o registro desse múltiplo Solha. Lógico que aqui vamos encontrar o homem Solha. Suas relações afetivas, emocionais e pessoais ocupam lugar de destaque na autobiografia. A relação com sua eterna companheira, Ione, com os filhos Dmitri e Andréia, com os pais e irmãos aparecem em vários momentos do livro, mas não da forma convencional. Eles entram nesta Autobiografia como se fossem personagens de uma ópera, onde o autor é o solista. Assim, eles surgem em cena em momentos que servem para Solha refletir sobre fatos da vida em geral, como quando fala das mortes dos pais e de Dmitri, emocionando a nós leitores. Ou como, numa crônica bem-humorada que mais parece um thriller do cotidiano, onde, ao descrever seus hábitos rotineiros, cita o ato de juntar ao jornal um bilhete ou o esboço de uma flor, para deixar junto do despertar de Ione.
Pai, mãe, irmãos, esposa, filho… Todos são a base para a construção desse cidadão e artista que se tornou Solha. E a Autobiografia é preciosa para quem quer saber bastidores de muita coisa que aconteceu na cultura brasileira nos últimos 50, 60 anos. Solha presenteia os leitores com passagens importantes de sua vida artística, que também são importantes para a arte nacional. Aqui, lemos com riqueza de detalhes a criação, bastidores de “O Salário da Morte”, primeiro longa-metragem de ficção paraibano. Solha, que apostou tudo no filme na época em que ele foi produzido, teve um prejuízo financeiro enorme, mas não relata isso com ranço ou questionamentos a parceiros na empreitada. Pelo contrário. O bom humor, a capacidade de rir de si mesmo, a ironia cáustica são marcas da narrativa de Solha sobre esse filme, e sobre todos os outros acontecimentos onde foi personagem principal, coadjuvante ou apenas espectador. Não há, em momento algum desta obra, passagens de mágoas contra quem quer que seja. Não há ranço nem quando questiona a “verdade” de alguns tópicos do Novo Testamento. Faz isso como um leitor, do mundo e das obras, como se fora um filósofo contemporâneo.
Outros momentos narrados são fundamentais para compreender nossa arte, nossa literatura, nosso mundo. Como quando ele fala sobre José Américo de Almeida e a “sacada” que teve ao ver complexo de Édipo e influência de Hamlet no romance “A Bagaceira” e até mesmo na morte do ex-presidente da Paraíba, João Pessoa. “Sacada” essa que levou Solha a escrever os livros “Shake-Up” e “Zé Américo foi princeso no trono da monarquia”. Inclusive, no livro, vamos encontrar a reação de José Américo a essas “sacadas” de Solha, entre irritado e nervoso.
Aliás, um parêntese: é impressionante como Solha, sendo paulista de origem, incorporou em sua arte com tanta força a alma do Nordestino, seja em telas que pintou, em romances onde parte do Nordeste para o universal, nas peças de teatro e nos filmes em que participou. Se o homem é produto do meio, Solha se tornou produto do Nordeste ao sair de Sorocaba para morar em pleno sertão paraibano e conviver com pessoas que representavam essa alma nordestina de forma mais autêntica. Creio que isso tornou ele um nordestino, no amor pelas coisas e pelos artistas da região e até mesmo no temperamento, meio explosivo, às vezes, como mostra em vários momentos do livro, mas, sobretudo, incapaz de bater em alguém.
Voltando ao livro.
Nesta Autobiografia, personagens reais entram e saem dela o tempo todo, numa espécie de caleidoscópio de troca de ideias, de culturas, de aprendizado com/de Solha com a vida. Mais do que explicar, ele tenta refletir sobre sua obra e sobre a vida em si, inclusive sobre sua poesia, uma das mais originais que já li no Brasil. A Autobiografia de Solha é escrita meio que no estilo do “Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, o heterônimo em prosa de Fernando Pessoa. A diferença é que no heterônimo de Pessoa, há reflexões a partir do que viu ou leu. Em Solha, essas reflexões são a partir do que viveu. E como viveu e ainda vive em função da arte! É isso, aliás! Um livro para celebrar o amor de seu autor pela arte e a cultura. Foi isso que o moveu nesses 80 anos. E continua movendo!
Linaldo Guedes
Editor
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