Solha em busca de si mesmo

Por Hildeberto Barbosa Filho

 

A Autob∕i∕ografia de Solha (Cajazeiras -PB; Arribaçã, 2023), de W. J. Solha, Roland Barthes decerto chamaria de biografemas. Seu movimento é fragmentado como se fora um diário, consequentemente, sem a lógica da cronologia. Os fatos já são alcançados in media res, isto é, em meio ao furor dos acontecimentos, e muitos deles são canalizados por lentes retrospectivas ou projetivas, conforme o imperativo das circunstâncias.

Não se cristaliza, portanto, aqui, a gramática sistêmica das enunciações fechadas, a ordem das coisas que se completam, a noção cartesiana do acabamento, tão comuns às autobiografias convencionais.

Episódios, sonhos, embates, pulsões, expectativas, malogros, vitórias, fracassos, enfim, tudo o que compõe o mesclado tecido do bicho humano passa, aqui, pelo crivo maleável e minuciosos da aventura vocabular.

Solha não se dá ao conforto da linearidade e faz de sua narrativa, cheia de condensações e deslocamentos, uma travessia por dentro de sua vida pessoal e intelectiva, legando-nos uma matizada fotografia de uma personalidade plural e poliédrica. Também uma fotografia de época e de geração.

Além dele, como privilegiado protagonista e como centro propulsor dos acontecimentos, aparece a espessura histórica, o filtro emblemático de certos momentos que o marcaram enquanto homem e enquanto artista, assim como grandes personagens, curiosas vivências, experiências estéticas, reflexões filosóficas, criações literárias.

Lendo seu texto, vejo-me diante de um ser da Renascença, marcado pela angústia da criação e pela diversidade dos focos culturais, onde a linguagem, mesmo sob a iluminação de prismas diferentes, culmina naquela forma sintética que lhe modula o olhar inventivo e lhe assegura unidade orgânica e temática.

O menino de Sorocaba, o bancário de Pombal, o leitor obsessivo, o pintor, o ator, o dramaturgo, o escritor, o poeta, o ensaísta; o pai, o amigo, a figura afável, generosa, desprendida, solitária e mais tantos outros ingredientes psicológicos e sociais que o fazem a criatura que é, são justapostos e revistos, aqui, como nódulos de uma estrutura existencial destinada aos sortilégios da criação artística.

Solha tem se surpreendido com o vigor do pensamento e da expressão dos paraibanos. Principalmente com alguns personagens de saber enciclopédico e indiscutível força criadora.

Ora, vejo Solha nesta vertente rara que aqui deu, por exemplo, um Osias Gomes, um Walter Galvão, um Bráulio Tavares, polígrafos de conhecimentos multiplicados.

De outra parte, esta autobiografia demonstra aquilo que os formalistas russos identificam como o ”desnudamento do processo”, ou seja, a exposição dos passos adotados pelo método de criação de cada escritor ou poeta. Com sua leitura, portanto, temos acesso, até onde é possível se poder saber, aos demônios individuais, aos dramas históricos, às fontes culturais que germinaram a singularidade do autor. Suas apostas teóricas, seus mitos estésicos, seus credos ideativos, suas escolhas éticas, seus abismos literários.

A escrita lembra muito o ritmo de um romance de formação, embora não seja, claro, uma narrativa ficcional. Seu fundamento é a memória, mas uma memória seletiva que evoca principalmente os percalços intelectuais de uma individualidade que se constrói em meio às mais diversas solicitações do mundo artístico. Uma individualidade que, ao mesmo tempo em que procura compreender o mundo, os enigmas da alteridade, procura compreender a si mesmo.

A narração, a descrição, a dissertação se alternam a cada registro situado. Tudo em favor de uma investigação analítica, de um balanço existencial, cujo sentido, se o há, parece ficar em suspenso, como se pode deduzir da anotação final da página 343:

“REDUZINDO TUDO ÀS DEVIDAS PROPORÇÔES, já me perguntei de que serviu todo o meu empenho? E aqui mesmo considerei que não escrevo, mais, para os outros – sei que tenho poucos leitores – mas apenas para minha própria ânsia de entendimento”.

Ora, toda autobiografia é uma busca de si mesmo.

Por isto, leio este livro como se este livro fosse uma súmula. Não teológica nem muito menos teleológica, porém, uma súmula de caminhos que ainda não se esgotaram. Caminhos abertos, bifurcados, infinitos. Caminhos que nos apontam outros caminhos, numa espécie de espiral da palavra e da interrogação. Sim, porque não interpreto esta autobiografia como um texto que apenas revela e expõe, mas, sobretudo, como um texto que se sustenta principalmente na interrogação.

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