O escritor e amigo Waldemar José Solha afirma com freqüência que o Estado da Paraíba não para de surpreender. Com efeito, é inegável. Para quem acompanha arte e particularmente a literatura, há de notar que aquele rincão do Brasil, está sempre a dar frutos. E dos melhores. A escritora e cantora paraibana Fidélia Cassandra, resolveu em muito boa hora, ‘cantar’ em “Antes de ser Blues” os poemas de sua lavra. Em que pese a homenagem a grandes nomes da música – Blues sobretudo –, que de uma forma ou de outra inspiram a poética e o repertório musical da autora, a obra termina por se afigurar como um brinde ao leitor que tiver a oportunidade de desfrutar desse pequeno livro (de 100 páginas). São textos que seguem numa batida próxima à do gênero musical eleito e celebram a vida, o amor, a sensualidade, a solidão e outros percalços e conquistas da circunstância humana.
Como se sabe o Blues é um gênero criado por afro-americanos no extremo sul dos Estados Unidos em torno do fim do século XIX. Embora haja controvérsias quanto às suas reais origens, o certo mesmo é que o ritmo se desenvolveu a partir de raízes das tradições musicais africanas, canções de trabalho afro-americanas, spirituals e música tradicional, na verdade uma mescla de tradição, expressão pessoal e musicalidade de características bem simples, usualmente com três acordes dentro de uma estrutura básica. É que os escravos das plantações de algodão usavam o canto, nas chamadas worksongs, para embalar suas intermináveis e sofridas jornadas de trabalho. E é assim que Cassandra Fidélia nos convida:
“Pneumatic Blues”
“Eu quero te contar / a minha tristeza. / Eu quero te cantar / o meu triste blues. / Cantar é voar. / Voar, liberdade. / Eu quero te amar / nas asas do blues. / Eu quero te contar / a minha alegria. / Eu quero te cantar / o meu triste blues. / A tristeza alegre / do cantar blues. / A alegria triste / do cantar blues. / I wanna tell you / My Sadeness. / I wanna tell you / My happiness. / I wanna sing, sing, sing / the blues.”
A obra da senhora Fidélia (foto) se inaugura com oito breves poemas dedicados a grandes nomes da música como Nina Simone, Elza Soares, Bessie Smith, Billie Holiday, Djavan e Ella Fitzgerald. Esse prelúdio se expande no corpo do livro numa poética que levou o crítico literário Hildeberto Barbosa Filho a escrever em texto do Prefácio: “A negritude das vozes ecoando na negritude das noites, solfejadas pela fria solidão do desespero existencial, habita cada partícula silábica de cada palavra. E a voz, que se insinua pela carne viva de cada poema, estabelece a medida exata da evocação poética. Somente uma autora, com fortes e intensas ligações com a música norte-americana e também com certas expressões líricas de sua herança poética (com certeza uma Emily Dickinson, uma Elizabeth Bishop, uma Marianne Moore, uma Sylvia Plath, por exemplo), poderia lograr resultados estéticos deste tipo”. E encontramos essa feliz convergência entre música e literatura em poemas que nos levam por um ritmo, ora sugestivamente sensual como ocorre em “Águas”.
Entre as coxas / folias de girassóis / sépalas e pétalas / úmidasúmidasúmidas / ora abertas / ora unidas / por ânsias / por açucares / por sais / nas folhas do teu dorso / orvalho morno / orvalho morno.”
Ou pela tentativa de deslindar tantas e tantas transformações do viver: Poema “É do mundo”:
“Meta, meta, metamorfose – / o óvulo- / o bebê- / o menino. / Meta, meta, metáfora – / o jovem- / o homem- / o velho.
O casulo- / a crisálida- / a borboleta- / Depois a delicadeza da asa. / Depois o nada…
A beleza de partida, de viagem. / de malas prontas. / A morte é via crucis / da beleza.
A metamorfose, a metáfora- / A meta fugaz- / A vida não demora- / a metamorfose é do mundo.”
Na longa noite dos tempos onde o Blues nasceu, os escravos eram completamente privados de sua cultura, obrigados a abraçar o cristianismo, os costumes dos brancos e impedidos de cantar suas músicas. Mas para se esquivarem da privação de suas melodias, utilizavam um recurso simples e eficaz, cantando “canções de trabalho”. Enquanto laboravam nas plantações, um “gritador” (holler, em inglês) dava um grito ritmado e longo, que era respondido por outro trabalhador. Era o mote da canção. Assim certos poemas fazem eco em nossa sensibilidade como este no qual somos assaltados por acordes da dolorosa consciência do estar-no-mundo hoje. Poema “Moderna idade II”.
“Moderna idade / onde estás / que tanto busco // Nas maçãs etiquetadas / do supermercado / nas peras de grife // Cada dia. estás mais / longe / de tudo que foi dito // Moderna idade / onde estás / que tanto busco // Nas prateleiras / a fome e a saciedade / o veneno e o antídoto / a cura e a doença // A vida mais curta / o amor mais líquido / a morte mais perto / o homem artificial // Moderna idade / onde estás / que tanto busco // uma guerra por dia / um holocausto por dia / um inferno por dia / muitas nuvens a nos mirar.”
O Blues é uma expressão da condição humana e a autora sabe que para desfrutar do Blues, a pessoa deve captar antes de tudo, que não é só execução de notas musicais, acordes e ritmos, o estilo está completamente enraizado em emoção, sentimento e verdade. É ritmo que nos remete a sentimentos como o amor, que não se vê, não se racionaliza, não se explica, apenas sente-se. Esta a musicalidade poética desse livro.
Livro: “Antes de ser Blues”, poesia de Fidélia Cassandra, com ilustrações de Flora Santos – Arribaçã Editora. Cajazeiras – PB, 2019, 100p. ISBN 978-85-906976-3-3