Qual Brasil ? Qual literatura ?
Em sua heterogeneidade, o Brasil é um contexto multifacetado no que diz respeito a temáticas e a modos de ver e de sentir o mundo. Um país cujo povo possui origens tão variadas teria de ser, necessariamente, refletido numa literatura igualmente diversificada. Admitindo-se a premissa como verdadeira, o que importa, no meu entendimento, é saber: nós temos essa literatura diversificada, que mostra o Brasil interiorano, o Brasil desconhecido por muitos de nós, o Brasil recôndito, profundo? Se não temos, por quê? Já tivemos? Que literatura nos interessa nesse momento histórico? Como será a literatura capaz de nos fazer caminhar para um lugar onde existam menos desigualdades? Que país queremos construir? Infelizmente, trago mais dúvidas que certezas. O Brasil que quero ver erguido e consolidado é um lugar mais humano, menos desigual, com maiores oportunidades para os oriundos das classes desfavorecidas e marginalizadas, capaz de acolher os seus filhos de todos os tons de pele, nascidos em todas as regiões. Um país feito mais de “sins” que de “nãos”, que promova a esperança, que dê segurança, com saneamento básico e tantas outras condições para uma vida minimamente saudável. Uma literatura que reflita essas contradições e desigualdades é indispensável na construção desse Brasil verdadeiramente novo, em que valha a pena nascer e viver. Literatura feita por negros, favelados, indígenas, homossexuais, mulheres, dotada de potência que possibilite trazer à tona essas questões e colocá-las em discussão, sem meias palavras, sem eufemismos. Literatura de olhos abertos e que possa ser um agente fundamental nessa transformação, que contribua para o “despertar” das pessoas. Não existe literatura sem utopia.
Escritas de Resistência ou escritas da resiliência ?
Escritas de resistência. Acredito no poder transformador da arte e na sua capacidade de se opor a qualquer tipo de dominação ou de poder arbitrário. Penso que, como escritores e escritoras, é nossa obrigação denunciar e, mais do que isso, servir como “facilitadores” para que leitores possam refletir e talvez compreender melhor as formas de dominação e de opressão existentes em determinado momento. Literatura é liberdade, escrever é exercer essa liberdade, seja na escolha dos temas, seja no seu tratamento. É um ato libertário e político por excelência.
Pesquisar literatura brasileira, para quê ?
Para compreender melhor o país, para identificar as necessidades do povo traduzidas e “filtradas” por seus escritores, ao longo do tempo. Especialmente as necessidades menos óbvias, que não são apenas econômico-sociais e que habitam o imaginário, o mundo dos sonhos e dos devaneios e que nem por isso são menos importantes, pois fazem parte do que poderíamos chamar de “identidade”, de brasilidade. Pesquisar para continuar a fazer literatura, para escrever melhor, pesquisar para que a literatura brasileira continue viva.
Militantismo, engajamento ou liberdade artística: desafios para a literatura brasileira contemporânea.
Não existe, no meu entendimento, nenhuma incompatibilidade entre os termos. A literatura pode ser militante, engajada e mesmo assim se mover no terreno da liberdade artística. É um quadro complexo, sem dúvida, pois há que se enfrentar grandes desafios: como ser um escritor militante, engajado, sem ser panfletário? De que maneira um escritor pode manter a sua liberdade de criação diante da censura explícita ou implícita, por exemplo? Muitos desistem, têm “brancos”, não conseguem escrever em circunstâncias assim adversas. Ou então abdicam de sua liberdade e passam a não fazer mais literatura. Historicamente, temos vários exemplos de que isso é possível, foi possível durante a ditadura militar. É um contexto asfixiante, castrador e terrível, mas há que se aproveitar as brechas, as frestas, enquanto for possível. E na completa ausência delas, persistir na criação, por vezes solitária, de obras que podem ou não ser publicadas, mas persistir, persistir sempre. Não vejo outra saída.
Qual o futuro para o mercado editorial brasileiro?
No momento, o que se vê é um quadro desolador, de cortes de incentivos governamentais às artes de modo geral. O governo atual, além de não ter nenhum compromisso com a educação e a cultura, parece desejar atingi-las, desmerecê-las, anulá-las. Muitas livrarias fechando as portas, editoras enfrentando graves dificuldades, escritores que não conseguem publicar, livreiros falindo, ilustradores, capistas e revisores sem trabalho. A cadeia do livro é complexa, envolve muitos profissionais diferentes e a crise do mercado atinge a todos. É extremamente difícil vender livros, editoras pequenas vendem pouco, e sua sustentação é quase fruto de um milagre. O grande nó continua sendo o da distribuição. Por que é tão difícil, no Brasil, fazer os livros chegarem aos leitores? O que deve ser feito para preencher esse abismo e estabelecer uma ponte entre o livro publicado e o leitor? Creio que, em primeiro lugar, temos de aumentar o número de leitores, o que significa formar leitores. Se houvesse um número de leitores representativo, capaz de exercer pressão para ter acesso aos livros, o caminho seria menos pedregoso. Sabemos que leitores se formam na infância e na adolescência. Por isso, creio que esse é o público que temos de levar em conta de maneira especial. Mas enquanto isso, o que fazer com o público adulto não aficionado à literatura, por não ter adquirido o hábito de ler? Feiras literárias, congressos, seminários, saraus formam leitores? Até que ponto? Como despertá-los por meio da produção desse tipo de evento? Como atrai-los? E como produzir os eventos, sem dispor de recursos materiais, já que o governo não tem o mínimo interesse na sua realização? Esse é um dos impasses que vamos ter de resolver.
Crise política, crise econômica, crise social: Impactos na produção literária nacional
Como mencionado acima, temos desafios imensos pela frente. O que vi nos últimos anos foi uma efervescência literária no país, com alguns fatores positivos, como, por exemplo, o aumento da produção literária de autoria feminina. Nesse contexto, o movimento Mulherio das Letras, criado informalmente em 2017, mas muito potente, por seu caráter democrático e aberto e por existir praticamente em todos os estados, vem desempenhando importante papel. Além das publicações individuais, produzimos dezenas de coletâneas de contos, crônicas e poesia, de 2107 para cá. Creio que os efeitos da crise agora é que começam a surgir, exigindo dos produtores de bens culturais novas formas de enfrentamento. Ainda não sei como nós, escritores, vamos nos organizar. Temos muito material para reflexão, que seguramente nos impelirá a uma ação mais contundente.
Exportação e internacionalização da literatura: que imagem do Brasil?
Não vejo como a literatura brasileira poderá se apresentar no exterior sem mostrar o que é o país atualmente, sem revelar os cenários de desconstrução, desfiguração e desmantelamento das instituições democráticas. Provavelmente será uma literatura desesperada, que pede socorro, que indaga e reflete sobre os caminhos possíveis e as saídas menos improváveis. Não somos mais o país do futuro e nem sequer o país do presente, depois do retrocesso que, a cada dia, se torna mais grave. No momento, somos o país do não lugar, das indefinições e da insegurança generalizada. Eu sinto medo e creio que, lamentavelmente, não estou sozinha.
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Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG. Tem treze livros publicados, seis para adultos e sete infantojuvenis. Recebeu vários prêmios literários, entre os quais se destacam o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG-1988, com o romance “Véspera de lua”, e a Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com a novela “Rio das pedras”. Publicou o romance “O indizível sentido do amor” (Patuá, 2017) e acaba de lançar “Nenhum espelho reflete seu rosto” (Arribaçã). Participou de várias coletâneas de contos, entre as quais “Mais trinta mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira”. Além de escritora, é jornalista, mestre em Comunicação Social, advogada e professora aposentada da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília – UnB. É colunista de revistas culturais e literárias digitais, entre as quais se destaca a Germina.
(Depoimento de Rosângela Vieira Rocha para a série Debates do Blog Etudes Lusophones, de Leonardo Tonus: https://etudeslusophones.blogspot.com/?m=1&fbclid=IwAR39T8QX_VoStr1z1Pvz29a6mcECLkPr8_Nx2XYaQBhoz71AWCWBdLpJSCY