Uma pessoa que lê nunca está sozinha

Por Eurídice Figueiredo

 

Estas crônicas de Marília Kubota, bastante variadas em suas temáticas, reinventam um vivido, através de reminiscências bem pessoais, até mesmo íntimas. A herança japonesa, fortemente tematizada em seu primeiro livro, “Eu também sou brasileira”, é retomada aqui; ao mesmo tempo em que reconhece o legado que carrega, ela o problematiza, discutindo a educação japonesa recebida e o preconceito racial da sociedade brasileira contra os asiáticos.

A ideia de mestiçagem já estava presente em “Retratos japoneses no Brasil: literatura mestiça”, livro organizado por ela. Marília está à frente também do Clube de Leitura de Mulheres Asiáticas, o que comprova que esse duplo pertencimento é um dos aspectos que atravessam suas atividades culturais e sua obra.

As crônicas refletem sobre a literatura em seu binômio leitura e escrita. Marília, que sempre se declara tímida e introvertida, afirma: “Quando escrevo ou leio, uma multidão me acompanha”. Uma pessoa que lê nunca está sozinha, ela viaja em aventuras de personagens e alarga sua imaginação, entrando em contato com mundos diferentes de suas experiências. A literatura não é puro entretenimento, ela suscita a reflexão e descortina outras realidades, inclusive fantásticas, mágicas.

Como lembra a escritora francesa de origem canadense, Nancy Huston, nós somos uma espécie fabuladora, precisamos inventar histórias, ouvir ou ler histórias. E Marília escreve que a linguagem e o pensamento são “a ferramenta ancestral da humanidade para diferenciar-se da bestialidade”. As histórias que inventamos nos ajudam “a enfrentar tempestades, desertos, dias e noites intermináveis. A imaginação e sensibilidade – sonhos e utopias – de poetas e escritores nos ajudam a seguir adiante em tempos de adversidades e incertezas”.

Nós sentimos vários tipos de emoção ao ler a boa literatura, alegria e dor, felicidade e angústia, perplexidade e compaixão. A riqueza da literatura decorre de suas ambiguidades, ela abre portas e janelas. É por essa razão que os fascistas não leem e têm raiva de quem lê, porque a leitura ajuda a pensar, a compreender e a respeitar a diversidade.

Marília aponta o paradoxo para quem escreve neste momento. Num mundo hiperconectado, parece que escritores/escritoras precisam dar opiniões, participar de feiras e bienais, fazer lives, estar no YouTube; são assolados pela demanda de se mostrar nas redes sociais, num alvoroço em que todos falam ao mesmo tempo; a escrita literária e a leitura, ao contrário, necessitam de silêncio, são atos solitários que exigem isolamento e concentração.

Algumas crônicas são retratos de pessoas que Marília conheceu ou conhece: o escritor Valêncio Xavier, o artista Cláudio Seto, a artesã Efigênia Ramos Rolim, que cria bonecas, bichos e figurinos com papel de bala, além de contar histórias e tantas outras figuras de destaque nos afetos da escritora.

As crônicas têm momentos líricos quando ela fala dos efeitos da pandemia, de como o silêncio das ruas provocado pelo confinamento lhe abriu a possibilidade de ouvir outros sons; têm também momentos cáusticos, ao relembrar a afirmação do presidente Trump, replicada aqui pelos seus admiradores, que a covid era provocada pelo “vírus chinês”, numa clara manifestação de preconceito racial contra os asiáticos; as crônicas têm momentos práticos, por exemplo, ao citar a descoberta da possibilidade de cozinhar para si mesma ao invés de comer no restaurante como uma das decorrências positivas da pandemia; a autora recorre a Rita Lobo, que tem um programa de culinária na televisão, mas também ao mestre budista Dalai Lama, segundo o qual “para viver em paz é preciso saber cozinhar. Por isto, preparar seu próprio alimento não é só atitude de sobrevivência e economia. É também política e nutre o espírito”.

Na crônica “Abuso e reparação”, Marília trata da dificuldade de falar sobre os abusos que sofreu. Fiquei comovida lendo que, ao assistir ao meu curso sobre Escritas de autoria feminina, ela se identificou com personagens de romances e contos que narram cenas de violência; mesmo sem falar, só o fato de ouvir os depoimentos e comentários de outras mulheres teve um efeito terapêutico para ela. O curso funcionou como uma comunidade compartilhando experiências, ainda que de modo remoto. E me lembro que algumas alunas expuseram casos de estupro coletivo e abuso sexual no seio da família, o que provocou impacto, mas também acolhimento.

Uma das crônicas, “Amizade é amor”, vem do poeta Rollo de Resende (Reginaldo Resende), amigo da Marília. E realmente, ao ler este livro, nos deparamos com a importância da amizade na vida da autora, e nos damos conta, ao mesmo tempo, que não podemos viver sem as amigas e os amigos. O amor, às vezes, azeda, vira vinagre, a amizade é mais leve.

Boa leitura!

 

* Eurídice Figueiredo é Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense (UFF), autora dos livros “A literatura como arquivo da ditadura brasileira” (2017), “Por uma crítica feminista –  leituras transversais de escritoras brasileiras” (2020) e “A nebulosa do (auto) biográfico – vidas vividas, vidas escritas” (2022), entre outros.

________________________

 

“Que o Só Levante”, de Marília Kubota, pode ser adquirido AQUI

Deixe uma resposta