Voyeur da miséria

Por Hildeberto Barbosa Filho

 

A poesia também pode ser um passeio, uma caminhada, uma viagem. Do Gênesis ao Apocalipse, numa espécie de alegoria dos passos que movem os roteiros da condição humana. Também pode ser o deslocamento de verbos e substantivos, a valia dos vocábulos, a dinâmica do léxico a nomear a diversidade

das coisas. Coisas singulares, coisas inóspitas, coisas dadas e coisas ignotas.

Eis, de saída, o traço lírico que põe o professor Rony Santos na cena poética paraibana com a coletânea (Re)verso da palavra (Cajazeiras: Arribaçã, 2023), em edição compacta, organizada e pensada poeticamente, em sua medida temática e na sua unidade estilística.

O (re)verso da palavra intenta atingir o reverso das coisas, o outro lado das coisas, as coisas avessas, os dados imperceptíveis, os lugares esquecidos; seres, bichos, calçadas, ruas, praças e avenidas de uma cidade que se expõe ao olhar aceso e indignado do poeta que vasculha seus desabrigos, suas entranhas, suas veias e artérias dilapidadas.

Sérgio de Castro Pinto, que assina breve posfácio, fala em “poesia urbana por excelência”, atentando para “a dicção amarga, cética, bem em consonância com a distopia que move um verdadeiro cerco ao homem contemporâneo”.

O poeta acerta por inteiro. De fato, não há complacência nem afagos piegas nessa canção de dor que Rony Santos elabora, para trazer à tona, e numa exposição descritiva, quase prosaica, sem retórica, sem atavios, as vísceras da cidade, a tragédia anônima e ostensiva de seus habitantes periféricos.

As palavras cumprem dolorosa jornada, e o poeta, através da voz lírica, crítica, distanciada, porém, empática para com os humilhados e ofendidos, atua como um flaneur sem destino, meio à Baudelaire, meio à Políbio Alves, observando a estranha coreografia das coisas.

Sem dúvida, há, na dicção poética de Rony Santos, muito de constatação, indignação, denúncia, libelo. Não obstante, a escrita não se converte em texto programático, em panfleto a serviço de causas sociais, políticas, ideológicas, comportamentais, tão ao gosto de certa poesia que abraça e defende credos, doutrinas, plataformas de boas intenções ou do suposto politicamente correto.

“Marquise”, poema da página 53, em seu recorte minimalista, ilustra bem o que quero dizer, senão vejamos: “Sob a marquise da loja,∕a vida em alguns metros quadrados∕ aparece escondida,∕mas a dor que dorme na calçada∕é  infinita”.

Já em outra clave e num discurso que pode ser lido como um miniconto, destaco o poema “Antes a colher do que a morte” (P. 88): “De dentro da casa, ∕gritos de socorro ecoaram.∕Nenhum vizinho se mostrou∕até se aglomerar na calçada∕para ver o corpo da mulher∕que fugia da bala”.

Que são textos como estes? A exemplo de tantos outros, seja em estratégia minimalista, seja em procedimentos mais discursivos, nada mais são que flagrantes de um cotidiano sob o olhar poético de um voyeur da miséria, das

ruínas, do lixo, do crime, do abandono.

Impossível não lembrar Jomar Moraes Souto, que nos deu o Itinerário lírico da cidade de João Pessoa, atento à paisagem rastreada nas suas componentes de beleza, cristalizadas nos monumentos históricos e nas evocações sentimentais.

Creio, no entanto, que Rony Santos ensaia outro percurso no seu antilirismo, ácido e cru, diante de uma cidade dilacerada. Quase diria de uma “terra desolada”, para me valer do belo título de T. S. Eliot. Mais próximo de um Políbio Alves, se contemplarmos certas zonas escuras do poema Varadouro, ou mesmo de um Eulajose Dias de Araújo, fazendo seus périplos pelos becos e arruados da cidade baixa, Rony Santos, à maneira de um fotógrafo da gente ferida e dos lugares estilhaçados, nos dá, com este (Re)verso da palavra, um triste, contundente, porém, belo retrato da cidade.

Uma cidade que “Quando menos se espera” (P. 64),

É noite.

O vento embaça,

carro balança

até que o sol deflore a madrugada.

E a terra prometida,

encharcada, chove,

dentro do carro parado na calçada.

 

 

* Artigo publicado no jornal A União, em 20 de agosto de 2023.

 

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