W. J. Solha e seu épico e caudaloso sentimento do mundo

Por Christina Ramalho

 

Em meus estudos épicos, há, evidentemente, alguns aspectos que se destacam. Um deles vem do encontro com o que eu chamaria de “mentes épicas”. Uma coisa é um/a poeta escrever uma epopeia ou um poema épico-lírico quando, em determinado momento, entra em contato com uma matéria épica que lhe desperta a intuição criativa e criadora. Outra coisa são os/as poetas cuja mente em si mesma é épica por natureza, por uma constituição psíquica e também social.

O pernambucano Marcus Accioly (1942-2017) é exemplo disso, assim como a carioca Stella Leonardos (1923-2019) e o paulista Haroldo de Campos (1929-2003). De igual modo, vejo o nicaraguense Ernesto Cardenal (1925-2020), os ingleses John Milton (1608-1674) e William Blake (1757-1827), os cabo-verdianos Corsino Fortes (1933-2015), João Vário (1937-2007) e José Luiz Tavares (1967-), o chileno Pablo Neruda (1904-1973)… Assim começo a ver o jovem poeta paraibano Joedson Adriano (1983-)… Mas dizer isso não é, absolutamente, sinônimo de afirmar que essas “mentes épicas” possuem um traço definidor que igualaria de algum modo, por exemplo, esses/as poetas a que me refiro aqui. Tampouco a ideia de uma “mente épica” se restringiria a poetas que produziram obras épicas, ainda que uma produção dessa natureza destaque ou favoreça o reconhecimento desse “caudaloso sentimento do mundo”, que impulsiona essas mentes ao impactante encontro com as matérias épicas que os/as/nos rodeiam. O próprio Carlos Drummond de Andrade poderia ser um exemplo disso, mas eu teria que pensar mais sobre o tema. “Sentimento do mundo”, contudo, traduz muito bem o que estou aqui tratando como “mente épica”, ainda que, volto a dizer, sublinhando que isso não é uma “formatação” pretensiosa.

Stella Leonardos, por exemplo, autora, entre MUITAS outras, das obras Cancionário catalão (1971), Cancioneiro capixaba (2000), Cancioneiro de São Luís (1981), Cancioneiro romeno (1972), Memorial de Rondon (1995), Memorial da Casa da Torre (2010), Memoranda (Romanceiro de Dom Sebastião, Caxias Cancionada, Brasil: Gesta do venturoso encontro, 2006), Curitiba memorada (1996), Irmão índio e irmã água (2010), Romanceiro da Abolição (1986), Romanceiro de Anita e Garibaldi (1977), Romanceiro de Delfina (1994), Romanceiro de Estácio (1962), Romanceiro do Aleijadinho (1984), Romanceiro do Bequimão  (1979), Romanceiro do Contestado (1996), tinha uma mente épica pragmática e historicista, que se organizou por meio do “Projeto Brasil”. Esse projeto conferiu uma espécie de “método” que lhe permitiu fazer emergir, por meio de seus cancioneiros, romanceiros, rapsódias e memoriais, esse sentimento caudaloso. A mente épica de Neruda era política. A de Cardenal, extremamente mística, em sentido abrangente. A de Milton, cristã. A de Accioly, estética [não à toa ele, em 1977, ele publicou seu Pré-manifesto ou anteprojeto do realismo épico (época-épica)]. E eu poderia seguir falando sobre os que os/as outros/as citados/as despertam em mim. Mas falar sobre tudo isso, incluindo o próprio conceito de “mente épica”, exige mais tempo… Quem sabe, nascerá um artigo ou um ensaio em que eu possa explorar melhor essas ideias.

Aqui, quero dar destaque a um artista multifacetado, W. J. Solha (1941-), cuja mente épica tem, a meu ver, contornos de intensa fusão entre filosofia e estética, canal por meio do qual seu caudaloso sentimento do mundo transborda em poemas extensos como 1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite. O quinto de seis tratados poético-filosóficos (2021), Vida aberta. Tratado poético-filosófico (2019), A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso (2018), Deus e outros quarenta problemas (2015), Esse é o homem. Tractatus poético-philosophicus (2013), Marco do mundo (2012) e Trigal com corvos (2004). Meu encontro com essa mente épica teve início com o Trigal, cujos versos “que eu/como um cristo que se deixa matar apenas para mostrar – voltando que a/ coisa funciona/persisto” já anunciavam que a catarse do poeta, oferecendo a catarse aos/às leitores/as, não pararia por ali. E isso também se poderia intuir a partir de outros versos da mesma obra: “Foi o que fez Camões querendo o toque de Virgílio que quis o toque de/Homero/e é o que também quero/pois é isso/ou zero”.

“É isso/ou zero” é definitivo e definidor. Solha não é absolutamente um artista do silêncio. A arte, nele, é pura dinamite (daí a perfeição do título de seu último livro, coisa da tão buscada harmonia entre forma e conteúdo). E seu sentimento caudaloso do mundo organiza-se a partir de um viés filosófico que se sustenta numa miríade estética, como se um processo incontrolável de refletir e provar, desconstruir e precisar voltar à reflexão, instaurasse um existir artístico que reinventa a palavra reinventando a própria arte, porque Solha não dialoga apenas com a literatura, nem se organiza a partir de um caminho desenhado nas terras regionais ou nacionais. Diferentemente de Neruda, cujo caráter também era universal, mas cuja obra foi “setorizada” a partir de matérias épicas continentais, extra-continenteis regionais, como se vê na trajetória que vai da epopeia continental Canto general, de 1950, a As uvas e o vento, de 1954 (que sai do Chile para a Europa e a Ásia), e a A rosa separada, de 1972 (centrada na chilena Ilha de Páscoa). Não. Em Solha, o épico e caudaloso sentimento do mundo é todo o tempo e todo o espaço universal, porque toca a existência humana e também a pulsão humana pela criação artística e pela constante reinvenção ou atualização das questões filosóficas que impulsionam a busca por respostas ao que, provavelmente, não as têm.

O mundo épico de Solha é uma dinamite capaz de reinventar as próprias explosões. É um susto seguido de outros. Um ritmo frenético em que a tecnologias e a realidade virtual, a comunicação de massa e os mais altos signos da erudição convivem, ainda que estabelecendo um imenso paradoxo. Na obra de Solha, Cervantes pode “conviver” com Ariano Suassuna (A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso), e “como assim se permite que seja o céu o limite”, “o Poeta,/travesso e possesso/apressa o processo,/fazendo com que as pétalas aflorem do cálice das flores,/cúmplices/e transbordem fito champanhe” (Marco do mundo), e, ao mesmo tempo, vê “o olhar do velho doente,/deitado,/de pijama/a rimar com o do cão debaixo da cama” (Deus e outros quarenta problemas) “Ou coisas com que ninguém se importa:/maçaneta da gaveta,/da porta,//ou sobre as quais ninguém fala,/como a alça da bolsa,/da mala” (Vida aberta. Tratado poético-filósofico), porque “O Homem é um condenado – não só o poema –  ao/Conhecimento Aproximado// como sistema” (Esse é o homem. Tractatus poético-philosophicus).

Em seu último livro, 1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite. O quinto de seis tratados poético-filosóficos, percebo uma consciência ainda mais aguda desse sentimento caudaloso e do potencial explosivo de um viver estético em constante diálogo com as filosofias possíveis (e impossíveis). Percebo uma consciência ainda maior das viagens que, mais que o corpo, a palavra realiza. E, embora se leia que “Poeta/não é/P(r)o(f)eta”, a sintonia fina de Solha com a amplitude infinita do existir nos traz versos definitivos como “Milagre,/’só’ o da vida,/onde a água não vira vinho,/mas o vinho,/vinagre”, dos quais algumas sensibilidades podem tirar a máxima da inutilidade de ficar “À espera de um milagre”, porque isso nos distancia do ser das coisas, como ocorre quando o filme do diretor Frank Darabont, recebido em português como “À espera de um milagre”, nos faz lembrar muito de Tom Hanks e nada de The Green Mile, obra de Stephen King, lançada em 1996, na qual Darabont se baseou. A épica caudalosa de Solha acende um alerta, fala da urgência de “pensar em quantas cores – de magenta ao/ciano – podem soar do preto e do branco do teclado/de um/piano!”. Por tudo isso, ler Solha é mergulhar no caos para encontrar nossos vazios. Preenchê-los ou não será uma decisão muito particular.

Obrigada, W. J. Solha, por esse épico e caudaloso sentimento do mundo, por essa mente que arrasta seus leitores e suas leitoras para o universo nada confortável do vinho virando vinagre, mas também para o tanto de poesia que recolhemos das aliterações do mundo, quando temos olhos para, vendo-as, vivendo-as, vasculhando-as, percebê-las, fora e dentro das laranjas mecânicas da vida.

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