Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)
Já escreveram que a memória é muito, muito mais do que um arquivo do passado; é o prisma através do qual vemos a nós mesmos, aos outros e ao mundo. Constitui fenômeno complexo e multifacetado que vai além da simples recordação de informações, e acaba por se configurar em processo dinâmico e adaptativo que nos ajuda a navegar no mundo, aprender com experiências e construir nossa identidade.
A recente publicação de “A doze”, livro de crônicas do escritor e professor Lourenço Dutra é exemplo cabal de resgate da memória a enveredar por duas vertentes que se entrelaçam. A memória pessoal, única e intransferível de um menino que nasce e se cria em uma nova cidade que então se constituía em promessa de mudança de rumos para um país, e uma memória coletiva, social, da cidade que se propunha a interiorizar o desenvolvimento da nação continental, reduzir a concentração populacional no litoral, promover a ocupação do interior, descentralizar o poder econômico e político e finalmente simbolizar a capacidade de um povo gerir seus próprios destinos rumo a horizontes mais amplos e mais justos. Menino e cidade nasceram em datas bem próximas. A cidade oficialmente inaugurada em 21 de abril de 1960. O menino nasce em 21 de dezembro de 1963. Essa a saga de “A doze”, reunião de crônicas tecidas em modo de flash back existencial do próprio autor que “veio ao mundo” em Brasília, a cidade promessa idealizada por Juscelino Kubitschek.
A obra é dividida em três partes a cobrir períodos existenciais que partem da primeira infância do menino quando, ainda tateante, se deu conta de onde estava, prossegue na adolescência repleta de descobertas e refluem na juventude do rapazinho idealista cheio de sonhos coloridos (e outros tantos manchados pelas trevas da maldade humana). Para quem não sabe, a construção de Brasília foi projeto combatido como uma insensatez por muitos, e por muitos outros aplaudido como uma resposta visionária e grandiosa ao desafio da modernização brasileira. Entretanto, e é preciso que se diga, a realidade nua e crua em nosso país, desde que o bandido do Cabral aqui aportou, parece estar inapelavelmente voltada para aquele dito popular do voo das galinhas que conseguem bater asas, voam sem altura e sem rumo, e terminam por ir a lugar nenhum.
Concebida como um exemplo de ordem e eficiência urbana, como uma proposta de vida moderna e otimista, que deveria ser modelo de convivência harmoniosa e integrada entre todas as classes, Brasília sofreu na prática importantes distorções e adaptações em sua proposta idealista primitiva, dando lugar a um crescimento desordenado e explosivo, segregando as classes baixas para a periferia e consagrando o Plano Piloto para o uso e habitação das elites.
A primeira parte da obra nos dá conta do pequeno núcleo familiar que acreditou no sonho. O pai um madeireiro do Recife que vendia postes de madeira para o Estado, a mãe uma professora do interior de Santa Catarina que após concurso público se mudou sozinha para Brasília com vistas a construir carreira no Magistério e que afinal precisou trabalhar em três turnos. A prole veio aos poucos. O protagonista da obra primeiro, depois outro irmão e uma irmã. Esta a família que serviu de base ao menino Lourenço. A Brasília que salta e se imortaliza nesta parte do livro é repleta de crianças e seus jogos e brincadeiras que incluíam pega-esconde, carrinhos de rolimã, bolas de gude, peladas, e pipas voando no ar quente e empoeirado do Planalto Central brasileiro. A seleção e ordem em que os acontecimentos vão se sucedendo na vida da criança, nos dão conta de seu amadurecimento que vai acontecendo paulatinamente às descobertas da ambiência social em que está metido. Em meio à uma cidade que ainda não passava de um imenso canteiro de obras em execução, é que observamos o amadurecimento do menino. O foco é o processo de transformação física, psicológica, moral, e social do protagonista, que é moldado pelas adversidades que enfrentou ao longo do tempo desde os começos de sua socialização e convivência nem sempre amistosa, quando então se dá conta que vivia numa espécie de faroeste caboclo onde nem sempre as coisas aconteciam de acordo com a educação e orientações recebidas na família. Brasília atraiu desde o início uma multidão de brasileiros trabalhadores e também, gente de toda espécie incluindo aí, vigaristas no que afinal acabou por constituir-se em verdadeiro microcosmo do país.
O livro na segunda parte descortina um grande inventário das fortes transições de valores e mudanças sensíveis de comportamento pelos quais o Brasil e o mundo passaram nos últimos 50/60 anos. O tempo passa e então o menino que morava na quadra 312 Norte, se dava conta (e aí já estamos nos anos de 1970/1980) de que algo muito estranho acontecia. Ele não sabia então muito claramente o que se passava, mas podia sentir que algo andava opaco naquela ambiência, sobretudo no pós-1964 quando um golpe militar ou mera quartelada (no dizer irreverente de seu pai), derrubou esperanças, do ideário progressista brasileiro. Durante a vigência do regime militar a cidade, com sua organização urbana idealista e impessoal, foi cenário perfeito para a reafirmação de um retrógrado conceito de “ordem pública”, preservando a estratificação social e segregando definitivamente os pobres, potencialmente perturbadores dessa ordem, para as periferias. A cidade tornava-se centro de comando de uma opressiva ditadura militar, e cárcere de presos políticos. E então, a capital do País do futebol, do carnaval e das telenovelas, tornava-se cada vez mais opressiva. O tempo transcorria e com ele muitas, muitas transições em todas as esferas da atividade humana.
Assim a vida do menino-homem Lourenço, imerso em um caldeirão de circunstâncias adversas e novidades de toda sorte. De um lado a cantilena de argumentos sobre a proteção da soberania nacional contra o perigo comunista, o regime autoritário e repressor, a formação de favelas e gangues de jovens, o crescimento da violência urbana, a cidade símbolo da política e da sociedade brasileira transformada em uma “ilha da fantasia”. De outro lado as descobertas prazerosas da vida: a leitura dos clássicos da literatura, o primeiro amor (que quase nunca dá certo), o apoio e orientação sempre presente da mãe, os choques com certos padrões de conduta do pai, as grandes amizades feitas, as festinhas nos “embalos de sábado a noite” ouvindo discos de vinil, a novidade da compra de um telefone fixo ou da primeira televisão colorida, os estudos e a graduação em história e jornalismo e finalmente, as dificílimas e vitoriosas campanhas pela abertura política e realização das eleições “diretas já” para a presidência da República. Essas as condições que levaram o protagonista (porque assim o desejou também), a longos processos de autorreflexão que ensejaram o desenvolvimento de uma personalidade resiliente sempre a caminho da autodescoberta de suas habilidades e talentos. Um belo exemplo de vida portanto.
Ponto alto do livro, a terceira parte sob a título de “Adolescentes, superquadras e muito rock and roll” nos deixa entrever mais de perto o envolvimento com o mundo da música do jovem cabeludo e irreverente que Dutra se tornara. O Rock and roll então em voga, representou para ele, mais do que a inclinação natural para o universo artístico. Era saída significativa entre a arte e um ambiente de contestação social que emergiu desde a década de 1960 até mais ou menos a de 1980. Analogias estruturais aproximaram as repercussões do universo musical sobre seus fãs, que também conduziam a críticas das instituições, ante os ideais de mudança que varreram o mundo. A nova sensibilidade se tornara força política. Um tanto dessa sensibilidade estava expressa nas ousadias das linguagens artísticas da época, em que o rock ocupou lugar de destaque. Gostar daquele tipo de música significou estar ao lado da irreverência, da expansão de emoções anteriormente reprimidas, de ouvir palavras que desafiavam os modos de vida predominantes e sobretudo, renegar o exercício dos podres poderes. Finalmente, e à guisa de conclusão, ficam dois registros. Primeiro: as melhores crônicas do volume são positivamente aquelas organizadas com base numa oposição, talvez inconsciente do autor, entre o passado nostálgico, perdido “para sempre”, mas capaz de ser momentaneamente recuperado pela memória, e o presente perverso que todos vivenciamos e sobre o qual parece não haver esperanças.
TRECHO: “Campinho como aquele não existe mais. Só existia aquele, que gosto de pensar, ainda permanece marcado com cal e equipado com redes novinhas. Campinho que permanece com suas peladinhas de finais de semana, ali, bem dentro do meu coração, amalgamado nas minhas recordações. E lá, na minha memória, existe uma lata repleta de mamonas, duas pipas e um potinho cheio de bolinhas de gude. O Campinho era o templo sagrado das peladinhas da meninada. Isso não se esquece. Fica ali na alma da vida para a vida, encarnado, para sempre.” p. 252.
Segundo registro importante que a obra como um todo e ao fim e ao cabo, imprime na sensibilidade do leitor neste ano de sua publicação (2024): aqueles milhares e milhares de “candangos” (assim eram chamados os operários das grandes obras de construção de Brasília), alguns dos quais com o sacrifício da própria vida, hoje vivem esquecidos em nosso inconsciente coletivo como estranhos da existência, exilados, perdidos, apenas cifras de um labirinto. Estão à espera de que afinal alcancemos a unidade de nosso povo e de nossa cultura, na conversão do Brasil a si mesmo em nova ideia de brasilidade, da abertura que tarda para uma nova e efetiva era de progresso e bem-estar social. Da integração enfim de um país cindido no espaço em radicalismos de toda sorte e alheio a si mesmo. Esse o agente civilizador por excelência que devemos àqueles homens e mulheres que um dia acreditaram no sonho. A eles devemos a busca e o encontro de uma saída.
Livro: “A doze” – Crônicas de Lourenço Dutra, Editora Arribaçã – Cajazeiras / PB, 2024, 320p. ISBN 978-65-6036-491-2 – Links para compra e pronto envio: https://www.arribacaeditora.com.br/a-doze/https://www.amazon.com.br/dp/B0DHV5JS8S
(*) Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema e À flor da pele – Contos e Destinos que se cruzam – Romance. Participou de 30 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional – Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.