Por Krishnamurti Góes dos Anjos
No último final de semana a leitura e releitura de um pequeno livro de pouco mais de oitenta páginas fez-me pensar nos clássicos da literatura. Estive por minutos sentado no sofá, com o livro no colo, a refletir sobre o que estabelece que um livro seja considerado um clássico da arte literária. Clássico ou canônico como queiram, a adjetivar obras validadas como de qualidade superior, consensuais, de domínio universal. A minha mente amalucada começa a refletir ao contrário, da lógica que seria de se esperar começando a elencar que uma tal obra sempre cai no crivo do tempo que só as referenda na posteridade. Nós os leitores de “hoje”, ficamos a avaliar o que o autor “quis dizer”. Pesamos e julgamos se não haveria ali algum sentido oculto presente num patamar mais elevado, além do significado imediato das palavras, atingível pela reflexão intelectual. Por certo que sim, e ainda mais. Certas obras podem ser avaliadas por um atributo espiritual pela maneira como é “contada”, deixando vastas possibilidades de interpretação. A originalidade é outra qualidade. O autor que se destaca é aquele que deixa indícios de si mesmo nos textos, desenvolvendo um estilo próprio composto de detalhes que revelam a sua individualidade, das experimentações com a linguagem se realizou, de pequenas sutilezas que enriquecem o contexto da obra e que abrem espaço para horizontes insuspeitados de subjetividades. Também se leva em conta, por certo que, é no uso que se fez da linguagem que se estabelece afinal a característica distintiva das definições para o que seja considerado literatura de qualidade. E forçoso concordar com um Ezra Pound da vida, para quem a Literatura vem a ser a mais alta das manifestações humanas, por ser linguagem carregada de significado até o grau máximo possível…
Muito bem; tudo isso a minha mente eufórica pensou no sábado. Já no domingo, em releitura curiosa voltei a pensar a questão, desta vez de maneira mais cética porque me assaltou a dura realidade do contexto atual da questão, levando em conta que nosso atual sistema literário anda cada vez mais assaltado por grupinhos e grupelhos de influências, panelinhas, e preferências escusas em tempos tão volúveis, dispersos, imprevisíveis, instáveis e o diabo a quatro… Desanimadora a situação se levarmos em conta também o sistema editorial hegemônico e excludente que se estabeleceu desde há muito no Brasil, mesmo debaixo desse engodo que é a tal democracia cibernética porque ela mesma acaba por impor o endeusamento de obras de qualidade duvidosa, transformada que está a literatura contemporânea em passarela fashion sequestrada pelo identidarismo, em que autores valem pelo contexto e não pelos textos; pelas pautas/bandeiras/militâncias, não pela linguagem, como tão bem apontou o escritor Ronaldo Cagiano.
Por certo, sempre foi mais ou menos assim, porque o humano sempre viveu, e hoje mais do que nunca, sob a égide da estreiteza de interesses escusos de ocasião e em perspectiva temporal que se consome nas fogueiras das vaidades de imediatismos exacerbados. E assim, nesse estado um tanto quanto melancólico que no domingo, após a segunda leitura da obra fechei o tal livrinho e abri o notebook para escrever a resenha do costume…
A primeira expressão que me ocorreu foi. “Mas não se pode deixar de considerar que é um clássico” este “Preciso de um poema nOVO”, da autoria do escritor Waldemar José Solha, que assina simplesmente W.J.Solha. A originalidade a que me referi acima, está presente desde a capa, elaborada por João Damasceno a partir da famosa gravura do pintor Salvador Dali que recebeu o título de “Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo”, obra de 1943 e que, segundo consta, teria sido concebida em plena Segunda Guerra Mundial à propósito da preocupação do artista com o futuro da humanidade diante da perspectiva sombria da época. Nela observamos um homem lutando para sair de um ovo cuja gema desenha o mapa do mundo. Acrescente-se a isto no título da obra, o grafema na fusão do fonema e a palavra NOVO. Aí temos o impacto inicial de “Preciso de um poema novo”.
Solha é autor profícuo que produz, desde há muito tempo, vários tipos de arte, à exemplo da literatura, teatro, cinema e pintura. Um artista extremamente criativo, que em literatura tem produzido poemas verdadeiramente épicos de grande profundidade. Seguindo uma inspiração que sempre alinha em suas criações aspectos literários e filosóficos, Solha encara esses dois campos do conhecimento com uma desenvoltura bastante peculiar e rara. Não é fácil operar tal entrelaçamento porque no íntimo de cada um desses campos (e já escrevi sobre isto a propósito de outras obras suas), opera-se um campo de trabalho muito particular que intenciona vocabulário próprio. Todavia, se é verdade que ambas vislumbram, em seu horizonte, o conflito da existência humana, é possível estabelecer entre elas uma vizinhança comunicante ou, uma orientação reciproca no sentido de potencializar o pensamento nas tramas do saber literário. Seja como for, cada vez menos restam dúvidas de que a filosofia pode trazer elementos necessários, para que a literatura se desenvolva a partir de si mesma; e a literatura, por seu turno, pode desenvolver temas que serão enrijecidos pelo discurso técnico do filósofo. Assim, no horizonte da produção filosófica e da produção literária, nos deparamos com o mesmo homem atravessado pela incompletude, pelo desejo de ser, por sua essência, pela falta, pela busca de sentido de sua vida que é sua tarefa própria. Filosofia e Literatura partilham desses mesmos anseios e buscam, cada uma por seu estilo próprio de significação, comunicar o drama da existência, detalhar o máximo possível a experiência do homem no mundo.
“Preciso de um poema novo” é texto de velocidade referencial estonteante construída sempre em chave poético-filosófica, e de maneira incisiva nas imagens que levanta, de tal sorte coerente e concatenadas, que assistimos ao desenrolar das eternas questões que sempre ocuparam as mais profundas inquirições existenciais da humanidade desde tempos imemoriais. A erudição que o autor demonstra, é uma verdadeira aula de humanidade porque leva a efeito uma grande habilidade em costurar conceitos, mitos, crenças, atavismos, obras de arte, autores, acontecimentos, tendências, artistas, santos, escrituras em suma; toda a tremenda carga cultural e simbólica que a humanidade acumulou durante milênios. De um verso a outro, de estrofe em estrofe, nos vemos recuados no tempo quinze mil anos quando um raio arrebenta um galho diante de uma caverna em que hominídios se escondem atemorizados. Pulamos da pré-história à antiguidade, da Idade Média, ao Renascimento, ficamos perplexos a lembrar de portugueses constrangidos diante de uma tribo de índios nus no Brasil de 1500, e também viajamos em velocidade estonteante até nossos tempos pós-modernos. O autor referencia no seu longo poema a descoberta da roda, o surgimento da locomotiva, do avião, as viagens à lua, a explosão nuclear, a avalanche dos computadores. Lembra a maldade humana em episódios como o êxodo dos israelitas do Egito, descortina em nossa memória a foto da menina queimada correndo nua no Vietnã, escandaliza-nos ao lembrar-nos dos crimes cometidos em Hiroshima e Nagasaki, Não esquece, porque não se pode esquecer mesmo, o desastre de Brumadinho e suas duzentas e setenta mortes, os atentados às Torres Gêmeas de Nova Iorque o Genocídio cruel de nossas inúmeras guerras e migrações.
Mas há também, nos versos desse nosso escritor filósofo que aos 83 anos, e com que vigor criativo, a busca da liberdade e do amor, esses desejos que nos atravessam de ponta à ponta, o drama da existência. Há em seus versos um tal sentido do humano, uma fé, e uma esperança que nos recorda também da natureza que a tudo preside. Que existem animais, pólen, flores, árvores, frutos, e até passarinhos que “já nascem sabendo tecer ninhos”. Tudo a se interligar lúdica e misteriosamente sem que nos demos conta de que estamos cercados por “uma infinidade de muito bem planejados detalhes”.
Positivamente e felizmente estamos diante de um autor que mergulha no “eu” angustiosamente, num esforço de transcendê-lo, e procura alargá-lo na direção de todas as realidades superiores que sua intuição desvenda ou vislumbra. Estamos positivamente em face de um caso e duma equação humano-estética completamente pessoais e irrepetíveis. Mas de onde surge esta peculiar explosão de transcendência? Vem do fato de intuir uma legião de contradições, antíteses, contrastes e “mistérios”, que diligenciam entender e reduzir a uma síntese tão perfeita quanto possível, a condensação que os harmonize e lhes empreste uma ideia de unidade. E é dessa forma, lançando-se em direção à “máquina do mundo” que o poeta assimila tudo quanto lhe passe ao alcance e emprega modalidades expressivas sem perder unidade, integrando-as em sua massa como se fossem o mero desenvolvimento de sua matéria-prima. Essa massa feita da soma de contrários de vária natureza, corresponde à unidade dos seres e objetos entrevistos em sua totalidade. Essa a visão totalizante do mundo que acaba por tornar-se ao mesmo tempo anunciadora, reveladora e condutora.
Qual o novo homem que forceja por nascer? Que destinos dará ele à sua existência? São questões que ficam a latejar no leitor e para as quais ainda não temos respostas. Viver, diz-nos a voz do fundo de nossas consciências. Viver! Assim tem sido desde o passado que não existe mais até o tiro no escuro que é a Inteligência Artificial. Esse maravilhoso poema, se configura como obra que certamente entrará no futuro para a galeria dos clássicos da Literatura brasileira. Poema de superior qualidade reafirmamos.
Livro: “Preciso de um poema novo” – Poesia de W.J.Solha, Editora Arribaçã – Cajazeiras/PB, 2024, 88p. ISBN 978-65-6036-603-9.